Andava pelo passeio. Passeava andando na rua. Era noite. Tinha lua. E lá, no umbigo do mundo, perto, bem próximo ao muro, o Sol também já não brilhava. Nada de estranho. Um estranho a andar.


Se o estranho estava a andar, seu andar não era estranho.Era apenas mais um paulistano. Que contrariando a lógica, tinha muitos amigos. Mas como regras são regras e existem para serem obedecidas, não discutidas, era também solitário.

Não por ser estranho. Isso era normal. Aceitável. Mas por não ter exatamente aquilo que as pessoas costumam chamar de confiança. Ou abertura com seus colegas. Preferia chamá-los assim, amigos era já muito íntimo. E não há espaço para intimidades no coração de um estranho.

Mas contava eu que estava o estranho a andar... E ao andar percebia o mundo ao seu redor.

É claro que ele era cego. Mas isso nunca o impediu de ver nada. Só quem enxerga pode pensar uma besteira dessas. Ele sentia. Mas também não vá o leitor e a sonhadora leitora pensar que por ser cego era uma pessoa mais sensível que outras. Não. Ele era um paulistano. Cego. Só isso.

Tudo claro estava eu a dizer... Sim, ele enxergava o mundo ao redor. O mundo e sua cor cinza. Isso ele imaginava, mas sabemos, imaginava corretamente.

Um cego, estranho, cheio de amigos, solitário, paulistano, a caminhar. Não se percam.

Pois ele mesmo se perdeu. E ao entrar na catedral da Sé, que era na verdade a capela do Belém, ele foi logo questionando porque não havia ainda começado a missa que deveria ter iniciado às 11hs. E o senhor que se sentava na primeira fileira respondeu que não tinha começado porque estava no meio da missa das 10hs.

E ninguém entendeu quando o homem começou a se indignar com o fato da missa ter se iniciado mais cedo do que o comum.

O padre achou que era uma pessoa fragilizada que precisava de ajuda. Alguns fiéis acharam somente que era um bêbado. Outros sentiram pena por ele ser cego. E outros não estavam nem aí, só estavam na missa para que os outros os vissem.

O estranho, cego-paulistano-solitário-homem e agora -perdido se acalmou e resolveu mesmo esperar o final da missa. E ao conversar com o suposto padre concluiu que estava mesmo em outra igreja. E aceitou a carona que o padre ofereceu a ele, quando percebeu que tinha mesmo pegado o ônibus errado.

E achou estranho, mas era um padre, quando o monsenhor ofereceu abrigo por alguns instantes para um café e bolo. Mas estava cansado e não se podia criar intimidades com um padre. Nem inimizades. De modo que não oferecia risco ao cego-estranho-solitário-homem-perdido-mas-nem-tanto um café e um pedaço de bolo.

O bolo estava mesmo gostoso. Mas era um pouco estranho os modos daquele padre. Talvez por estar sempre na periferia, mas pegava mal um padre não saber o plural da língua portuguesa. Depois do café o estranho-etc-. notou que não sabia mais onde estava sua carteira. E concluiu que deveria a ter deixado em casa, na pressa em que saira para a missa hoje pela manhã.

E não era estranho que alguém tão apressado pegasse o ônibus que não devia. E descesse tão longe do ponto habitual.. E esquecesse a carteira. Ao menos havia ganhado um café e um pedaço - que ele achou pequeno mas não comentou nada porque não se olha os dentes do cavalo que nos foi dado - e conhecido um padre novo, poderia até, quem sabe, mudar de igreja.

Sentiu de repente um líquido na testa. Estava suando. Logo em seguida sentiu uma dor. Depois não sentiu mais nada porque desmaiou.

O padre-que-não-era-padre roubou a casa do cego e o trancou lá dentro.

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