Vestido deste modo o menino só poderia pensar isso mesmo, concluiu o velho, como numa sentença. Ainda assim lhe parecia um exagero o horror do garoto. Eram os novos tempos, sentenciou novamente.



- Desculpa, eu não tenho dinheiro

O menino não devia ter mais de 10 anos. O velho enfrentara uma guerra, uma ditadura e nunca havia tido um momento sequer de horror como àquele. Sorriu. Tinha a impressão de que isto acalmaria o menino.

- O que...você quer ?

Um sorriso como aquele deveria trazer à cena ternura, sabedoria e uma doce melancolia. O sorriso rimava feito poesia.

Mas a face do menino não aplacou. Como se aquele sorriso para ele não significasse nada, senão um sorriso. E a última coisa que ele desejaria num momento como aquele era um sorriso. O menino não teve opção, estava ali porque a vida assim quis.

- Pelo amor de Deus, eu só quero ir embora.

O desespero era a única coisa que compartilhavam. O velho querendo ir pra usa casa, comer seu jantar, ver a televisão da vitrine e dormir. Ele não queria estar ali. O velho não teve opção, estava ali porque a vida assim quis.

A situação estava posta. Nada mais seria acrescido na cena. Um velho, um menino, um sorriso, desespero. A hora, é claro, não parava, embora devesse.

- Eu sei que você não tem dinheiro.

Os dois tinham família. Um tinha filha. O outro mãe. Os dois sabiam das coisas. Nenhum deles estudava ainda, embora já tivessem passado pela escola.Os dois mantinham em sí mesmos a calma, doçura e sabedoria necessárias à vida. Os dois a sabiam inútil.

Nada ocorrera realmente até ali. Nada ocorreria. Um parque, uma noite, um leve friozinho.

- Solta meu braço.

A fala não era exatamente uma ordem. Soava mais como súplica. Mas o braço não se livrava. Era incrível alguém naquela idade ter tanta força.

Lembrou-se do que carregava na parte de trás da cintura, só por segurança.

- Não vai fazer besteira.

Vestido deste modo o velho não poderia mesmo pensar em outra coisa, concluiu o menino como numa sentença. Ainda assim lhe parecia um exagero o horror do velho. Eram os novos tempos, sentenciou novamente.

E era, na verdade era o choque entre os tempos. Nenhum deles compreendia a lógica que ali vigorava.

- Você deve respeitar os mais velhos, sabe ?!

A frase parecia-lhe uma ordem, impiedosa e irônica. Se é que alguém ali respeitava qualquer ordem. Ao menos a ordem social estava respeitada. O conflito estava presente.

- Você deve educar os jovens.

As falas vieram uma atrás da outra. Saída de ambos. Ambas. Aquela coicidência surpreendeu aos dois. O braço teve sua prisão afrouxada. Mas era ainda prisão. Como a mão do outro que seguia lentamente em direção à arma.

- Então é assim.

- Assim é.

Aquele diálogo era fundamental. Breve como deveria ser. Esclarecedor como nenhum diálogo realmente é. Aquilo aplacou, ainda que brandamente a fúria deles.

A lágrima que ameaçara cair secou. Ao menos fisicamente. Sabia-se no entanto que a cena como um todo era um pranto, desolado e terrível.

Do diálogo nasceu o silêncio. A hipocrisia desagradava aos dois e palavras agora nada diriam.

O parque estava mesmo vazio. Somente marginais enfrentariam as cercas e grades e portões que o cercavam. Somente marginais. Pobres, ricos ou o que fossem. Marginais.

Um leve ruído poderia ser ouvido. Passarinhos, cachorrinhos, tatus-bola e outros bichos passavam fazendo ruído. Mas o ruído que seria ouvido era outro. A mão alcançara a arma.

- Você vai atirar ?

A resposta era óbvia. MAs a pergunta não queria respostas, queria incitar novas perguntas. Insultar. Um atrevimento insultar uma arma. Um atrevimento necessário à vida.

- Você vai morrer.

Todos iríamos, pensou ele. Todos iremos. Mas ele se sentia mesmo morto. Deselegante. Fora de moda.

Não dançava, não ria, não conversava. Televisão não tinha. Mas sempre quis aparecer na novela. Lindo. Mas ninguém naquela idade protagonizava uma novela das 21hs.

- Você também.

- Não agora.

Não. Agora ele ia renascer. Nunca tinha sentido a dor real. Aquela seria a sua primeira vez. Por isto lhe caiu uma lágrima, não por medo.

Mas as interpretações fazem mesmo milagres com nossa cosciência.

- Medo ?

- Alegria.

- Me alegra te ver morrer.

- Me alegro com a dor.

Era este o ponto. Ninguém mais tinha sentimentos. Os dois percebiam isso. A percepção também era rara, sabiam os dois.

A arma foi apontada. Engatilhada. Lentamente o dedo forçou a alavanca. A bala saoi. O outro morreu.

Que outro ? Tanto faz. A bala é o que importa

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