Vou à varanda deito-me à rede e observo os vizinhos.
Televisões ligadas, sons comuns de pessoas comuns.
Tudo em seu lugar.
Observo os cheiros que vem com o vento. O vento que não vem.
E as lembranças de um gosto que ficou no passado. Ela não voltará.
Tudo em seu lugar.
Ninguém pediu que ela voltasse. Ninguém duvidaria que ela voltasse.
As lembranças que fazem falta não tem um nome, um rosto, uma presença.
São apenas lembranças de quem sabe o gosto amargo de que não nasceu para aquilo.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
E se aquela casar, aquela outra namorar e aquela primeira esquecer. Não mudará o cheiro das fotografias e lembranças. Nem a lembrança de que sonhos não tem cheiro.
4 comentários:
Gosto muito do que escreves.Remete-me a lembranças... Cheiros são importantes realmente, mas nem sempre são sem rostos, pelo menos não para mim.Cheiros me fazem ver cenas como que desfiguradas e saltitantes em minha mente.Obrigada pela leitura.Abraços.
:) thanks
Sabe, esse poema me lembrou outro do Quintana q eu gosto muito, então aí vai:
Uma alegria para sempre
"As coisas que não conseguem ser
olvidadas continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre onde as
datas não datam. Só no mundo do nunca
existem lápides... Que importa se –
depois de tudo – tenha "ela" partido,
casado, mudado, sumido, esquecido,
enganado, ou que quer que te haja
feito, em suma? Tiveste uma parte da
sua vida que foi só tua e, esta, ela
jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto
deves à ingrata criatura...
A thing of beauty is a joy for ever
disse, há cento e muitos anos, um poeta
inglês que não conseguiu morrer."
Bjos querido!
Obrigado Jaque!! Não conhecia esse!!
Lindo, de fato!
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