- Foi, acho que ficou bravo comigo, deu um sorriso e disse adeus. Mas agora eu já esqueci, nem sei mais como era o rosto e o que falou...
É que à época não havia isso que chamamos de memória. Você pode achar que é desagradável, mas tem também seu lado bom. Depois que a gente faz algo de errado, não precisa se culpar. Mas há seu lado ruim, uma vez ouvi de alguém uma história bem assim...
- Quem é aquele ali ? - perguntou a menina intrigada
- Aquele ali? É Morfeu o apelido dele...
- Mas por quê? - insistiu, curiosa, a menina.
- Se bem me lembro, Morfeu é o nome que se deu, um dia muito antes de hoje, para o criador dos sonhos todos.
E não adiantava explicar pela metade, a menina era mesmo só curiosidade. A conversa inha e vinha, quase sem respirar os sonhos entravam na menina.
- O que é 'lembrar' ?
Você, que aí está, pode até estranhar, mas naqueles idos lembrança e memória era coisa que só Morfeu conhecia... Bem, só ele não, mas voltemos à história...
- É como sonhar, um sonhar diferente. - E a mais velha já estava mesmo impaciente...
- Me explica?
Não havia tempo, Morfeu passou pelas duas, esbarrando, gritando, dançando e dizendo:
- Agora estou novo, de novo! Agora estou novo, de novo!
E antes que a menina entendesse qualquer coisa o tal maluco se sentou. Uma lágrima caiu do rosto metade limpo, metade sujo, que aquele careca cabeludo trazia ali.
- Por quê ele ficou triste, Vozinha? - foi logo perguntando a criaturinha.
- É que ele não escolheu bem o sonho dele.
- Mas, e pode escolher o que a gente vai sonhar, Vozinha?
- Quando a gente sonha acordada, pode.
- E como faz para sonhar acordada?
- É coisa perigosa, e só para gente muito sabida.
Claro que a menininha não se contentou com aquela ladainha, mas era tudo o que tinha a dizer aquela voz bem fininha.
Ah, você achou que ela era avó da garotinha? Não, não... era mais velha, mas o nome era porque a voz dela era bem pequeninha.
O tempo andou e circulou uma e duas vezes. A menininha já não era tão 'inhazinha' , já estava, de fato, mais grandinha. Mas a curiosidade não ia embora.
- O que Morfeu está fazendo, Vozinha?
- Sonhando acordada, menina.
- A senhora sabe fazer isso, Vozinha?
- Sei sim e também não sei, menina.
- E como é que é possível, coisa assim?
- É fácil saber sonhar acordada, menina, difícil é saber quando parar.
E com essa ela teve de se contentar. Morfeu continuava a sorrir e a chorar, mas já estava magro demais, não lembrava mais de se alimentar. A menina, boa que era, levava comida bem gostosa e até sobremesa, mas, para Morfeu, não havia mesa.
- O senhor consegue me ouvir?
-
- E me ver, o senhor consegue?
Foi quando Morfeu olhou de lado. A menina não soube, assim com certeza, se ele havia mesmo olhado, ou se estava só parado...
- Então eu perguntei se ele conseguia me ver e...
- E ele olhou para você, não foi?
A Vozinha era mesmo muito sabida...
- Como a senhora sabe?
- Foi porque eu também já fiz isso.
- E ele? Olhou?
- Às vezes ele olha, às vezes não olha. Não é que ele esteja cego, é que ele está olhando só para dentro.
- E como é isso de olhar para dentro, Vozinha?
- Eu posso te ensinar, mas é muito perigoso. Você precisa ter cuidado.
- Por quê?
- Porque uma vez que olhamos para dentro, a vontade de olhar para fora diminui.
- Tenho saudade. De fora e de dentro
- Ué, Vozinha, ele sabe falar? Não entendi, o que ele disse?
- Sabe menina. Ele disse que tem saudade.
- E saudade, o que é?
- É vontade de voltar no tempo e acontecer de novo o que já foi acontecido.
- Quando o estômago dói é que a gente está com saudade de comer?
A menina era bem esperta, afinal....
- É, mas também pode ser quando a gente queria brincar mais.
Foi quando a Vozinha mostrou bem direito à menina como fazia para olhar só para dentro. E a menina aproveitou, e sonhou e lembrou. Até que Morfeu ela encontrou.
- Agora eu também já posso ser como você, já sei olhar para dentro.
Então uma coisa muito estranha aconteceu. Morfeu olhou bem no olho da menina, e um dos olhos dele estava chorando e o outro sorrindo. Era um 'troço' bem esquisito.
- Porque você está meio-chorando ?
- Porque estou meio-perdido.
- E porque você está meio perdido?
- Porque metade de mim eu sei que está aqui, com você. Mas a outra metade eu já não sei...
- E pode isso? A gente se dividir assim?
Agora que a menina sabia olhar para dentro conseguia conversar o outro. E isso ela percebeu...
- É que quando descobri como fazia para olhar para dentro, percebi que também era bom olhar para fora. E fiquei olhando 'meio-para-fora-e-meio-para-dentro' até que uma parte de mim eu esqueci dentro das coisas que já aconteceram comigo...
- Eu achei que era bom fazer isso, para a gente não ficar só para dentro.
E foi quando Morfeu mostrou que seu nome devia ser mesmo, Sabedoria...
- O melhor, menina, é ser inteiro. É bom olhar para dentro e bom olhar para fora. A gente olha para dentro para saber as coisas boas da gente, e olha para fora para saber as coisas que ainda precisam ser boas em nosso inteiro. Mas a gente só se perde quando tenta fazer tudo ao mesmo tempo.
E foi assim que Morfeu inventou o sonho, para saber o que precisamos ter ainda. E a saudade, para nos lembrar do que já temos.
3 comentários:
Lindo, lindo!!!
"A conversa inha e vinha..."
Há tempos não leio um texto que quero voltar a ler o dia inteiro, pra não esquecer de olhar pra fora-dentro.
"Bom mesmo é ser inteiro"
Adoreeeeeeeeeiiiiiiiii !
Obrigada por compartilhar!
Que texto lindo, querido. Viajei nas palavras. Obrigada por nos presentear assim. Beijo!
Gente eu que agradeço... rs ;) É parte de um livro de contos infantis, que espero lançar um dia...
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