- E foi assim que tudo terminou?
        - Foi, acho que ficou bravo comigo, deu um sorriso e disse adeus. Mas agora eu já esqueci, nem sei mais como era o rosto e o que falou...

         É que à época não havia isso que chamamos de memória. Você pode achar que é desagradável, mas tem também seu lado bom. Depois que a gente faz algo de errado, não precisa se culpar. Mas há seu lado ruim, uma vez ouvi de alguém uma história bem assim...

Começa a tocar aquela música e logo imagino aquele momento.
E antes que a sensação boa flua por toda a pele aquela outra sensação toma conta.
E antes que a música acabe já estou arrependido de ter lembrado de tantas sensações.

E arrependido de começar a escrever.

E já não sei se escrevo àquela que era dona da música,
ou àquela que é dona dos meus sentimentos,
ou àquela outra na qual me vejo, e a vejo, imaginando a si mesma enquanto lê.

E me arrependo de ter continuado a escrever.

A música encerra e recomeça.
E já não sei que memórias acionar e que memórias abandonar.
Há tempos que venho tentando descrever e me pergunto:
seria descrever o ato de apagar?

E me arrependo ter escrito e descrito e lembrado e esquecido.

E me arrependo de ter vivido. Porque dói depois que a gente morre.
O coração seria uma represa.
Os olhos hidrelétricas.
As veias seriam rios.
E sentimentos eletricidade.

Se tudo fosse simples...

O coração teria visão.
Os olhos sentimentos.
As veias todas teriam sangue.
E a alma teria nervos.

Se tudo fosse simples...

As hidrelétricas fariam quimeras.
As represas teriam vida.
Os rios teriam o que pescar.
E a eletricidade não seria coisa a se cobrar.

Se tudo fosse simples...

Mas continuo na marginal.
E meu sangue não tem mais cor.
          Chorando ele se levantou. E decidiu que não ia pensar no assunto. E levantou-se e saiu de casa. Já apenas com o sal que restou em sua face ele colocou os óculos de Sol. Decidiu que também não veria brilho nenhum.
              Quando me disseram que aquela bola amarela no meio do pano escuro (que chamam de noite) tinha o nome de Lua, eu pensei que fosse mentira.
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