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saudade não precisava doer, dizia minha avó
enchia os olhinhos nublados de experiência e contava dos tempos de namorada
repetia aventuras com a mesma alegria que as vivera
detalhava roupas, nuvens e olhares com a facilidade do tricô
parecia ciscar a juventude no chão com suas meias de lã
achava uma história entre suas receitas e nos chamava
empoleirávamos netos pela cozinha mais saudosa da redondeza
olhos fritos nos rostos e ouvidos de panelas a espera dos ingredientes
enquanto picava, sovava e descascava, narrava e nos misturava para o jantar
suspirava e fazia deliciosos pratos enquanto revivia sua paixão
ou seria ela a poetiza dos fogões com os sonhos de outrora?
por vezes, entre uma cebola e outra, temperava o assado com uma lágrima perdida
saudade, sempre dizia ela, não precisava doer
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